Arte-enlevo
A conspiração da consciência
Preâmbulo
O que é
arte-enlevo? E de que se trata a conspiração da consciência? Temas amplos, de
envergadura enorme. Se limito a
amplitude deste preâmbulo é por pura vontade de apegar-me à investigação
científica em docência do ensino superior.
Minha inclinação intelectual, no entanto, é sempre a de romper barreiras
e limites e açambarcar realidades a partir de generalizações. Sempre fui desse modo ao tratar de algum
objeto de estudo. Sempre vi o todo e
depois as partes. Para um desenhista,
isto é bom, até certo ponto, mas o resultado é que, no começo da minha
carreira, meus trabalhos artísticos, às vezes, careciam de acabamento. Os detalhes... “O diabo mora nos detalhes”,
já disseram...
Mas enfim, é
preciso começar do começo para usar mais um clichê. Porque arte-enlevo? A arte já não é tudo que
pode ser sendo apenas arte? O
utilitarismo em arte já não tinha sido abandonado definitivamente após toda a
revolução tecnológica da fotografia, cinema, vídeo, entre outros aparatos? A
resposta, a meu ver, é sim e não. A arte
ainda não é tudo o que pode ser, mas alcançou níveis de independência,
originalidade, poder estético e de articulação e influência na atualidade nunca
antes vista; a despeito de muita gente torcer o nariz para a arte contemporânea
sem nem entender... Não sem motivo, dirão outros... E porque digo que a arte não é tudo o que
pode ser? Não é pelo mesmo motivo que é o que é. A aparente ou factual
inutilidade da arte agrega um valor subjetivo infinito a uma peça de arte que
pode se desprender das amarras do objeto tecnológico – design mediado pela
técnica – ou das amarras ideológicas – design ou anti-design mediado pelo
social – e passar a representar uma inumerável carga de significados a partir
do significante projetado, criado, composto justamente para este fim. No entanto, esta pretensa liberdade – ou
factual liberdade – é tanto seu maior valor quanto seu calcanhar, seu tendão de
Aquiles. Sabedores dessa questão, muitos artistas ao longo de todas as eras,
criaram e cultivaram a arte visionária e a arte objetiva – ligadas à
experiências metafísicas ou espirituais com uso ou não de psicoativos – cuja
intenção primordial seria a expansão da consciência. “Recentemente”, veio se somar aos tipos de
arte existentes, a arte bruta e a arte naif – ligadas a execução de peças por
artistas com problemas mentais ou por artistas que não tiveram formação
artística acadêmica – o que alargou o espectro de definição das artes, bem como
fez a grande contribuição da arte terapia, que se liga a propostas terapêuticas
a partir da arte. Mas me parece que há
uma lacuna, nesse sentido, que escapa aos olhos do homem contemporâneo. A expansão da consciência da humanidade como
um todo, não pode se dar sem que ocorra a modificação de mentalidade, de
pensamento, de atitude em um número considerável de pessoas que representariam
uma massa crítica, cuja evolução carregaria todo o resto para esse nível
avançado automaticamente, como um fluxo de instantaneidade. A arte é individual, cada um a vê de um modo
todo peculiar, próprio, seu. Isto é
verdade, mas é só parte da verdade. O
grande conjunto dos clássicos de obras artísticas – literárias, escultóricas,
pictóricas, animadas, quadrinhográficas, cinemáticas, videográficas e outras –
só é reconhecida como tal porque são compartilhadas. Por este único motivo? Não. Eu diria que este
é 50% do motivo. O imaginário coletivo elegeu um cânone, esse cânone seja
erudito, cult, mid-cult, pop, é afastado, repelido ou usado e endossado por
artistas, de acordo com suas conveniências e objetivos. Objetivos... A arte pode não ser utilitária,
mas possui objetivos. Que objetivos tem
a arte? Fazer pensar, discutir, questionar. Emocionar, afetar
sentimentalmente. Empolgar, suscitar
valores, clarificar pensamentos ou simplesmente trazer um deleitar estético à
baila.
Não se trata
de dizer que a arte pela arte não existe ou não é válida. A fruição da arte
envolve vários níveis. Dentre estes níveis, o espiritual, o enlevo espiritual. Trata-se de dizer que ocorre algo maior que o
atributo de ser prática artística da arte em certas peças de arte. Esse algo a
mais é objeto de estudo aqui. Desse
modo, a arte-enlevo é um gênero de arte que fica no meio do caminho entre a
arte visionária, a arte objetiva e arte terapia, basicamente, nas seguintes
formas de contato:
ARTE-ENLEVO
A arte-enlevo propõe uma arte em que se transpasse o
atributo de ser simplesmente arte da prática artística. A arte-enlevo transpassaria a condição de
arte porque estaria em dinamicidade com expressões artísticas no êxtase, no
enlevo. Propõe o elevar de mentes,
consciências e espíritos tanto na pura crítica reflexiva, quanto no puro
deleite de sensações e em âmbitos de maior apreciação estética plena.
Arte-enlevo, arte egóica e arte da neutralidade
Como havia
diferenciação entre a serpente boa e a serpente má entre povos da Antiguidade,
particularmente no Egito Antigo, entre boa e má arte, é lógico, há uma grande
diferença. Entre o Agathodaemon e o
Kakodaemon, a serpente boa e a serpente má, segundo Blavastky no livro A
Doutrina Secreta, ocorrem diferenças enormes.
Só na Idade Média
passou-se a considerar as serpentes exclusivamente como más, como símbolos do
mal. Mas como os povos antigos chamavam
os grandes sábios de serpentes ou dragões, hoje os grandes mestres, artistas, atletas
ou intelectuais, por vezes, são chamados de “monstros sagrados”. Por que serpente ou dragão? Por que “monstro sagrado”? Porque havia pensadores gregos que usavam a
metáfora de comer o coração e o fígado das serpentes para adquirir a sabedoria,
advinda da própria lenda ou mito ou construção filosófico-religiosa de Adão e
Eva no Paraíso e as suas quedas por meio da maçã oferecida pela serpente à
Eva. O conhecimento do bem e do
mal. Suas palavras foram tomadas como
verdadeiras e o sábio tem seus ensinamentos consumidos – ou assimilados – pelos
adeptos para adquirir a sabedoria.
A arte egóica se
contrapõe diretamente ou indiretamente à arte-enlevo. É a arte em estado isolado, o sonho profundo,
a escuridão, a inércia. A arte da
neutralidade como o próprio nome diz, propõe relações de troca entre o elevado
e o negativo, entre o ego e a aniquilação do ego, sem opôr-se nem a um nem a
outro. Freneticamente ela propõe a
atividade, seja essa atividade voltada para o elevar-se ou voltada para a
baixeza, ao mesmo tempo, ou ora para um lado, ora para outro lado.
Tamas (arte egóica),
Rajas (arte da neutralidade) e Sattva (similar ou igual à arte-enlevo) seriam
as correspondências dessas classificações de acordo com a Ayurveda em conjunto
com a consciência elevada ou consciência cósmica, apontada por orientalistas e
adeptos de religiões orientais e pensadas artisticamente, segundo nossa visão.
A arte egóica se
concentra, em grande parte de sua atuação, no grotesco e no espalhafatoso, no
exagero e na ilusão. Mais comumente
encontrada em obras de arte da arte pop e do mid-cult, mas pode ser encontrada
até no cult e no erudito, quando pensamos em certas “degenerações” desse
próprio movimento sem direção das elites/vanguardas ou pseudo-elites/vanguardas.
A arte da
neutralidade se concentra, na maioria das vezes, em dubiedades e em
subjetivismos, em conexões e em velocidades.
Mais comumente encontrada em obras de arte do cult e do mid-cult, mas
pode ser encontrada, também, tanto na arte pop quanto na arte erudita, senão
totalmente, mas parcialmente.
A arte-enlevo, por
sua vez, se concentra na pureza e no equilíbrio, na vigília e na causa. Mais comumente encontrada na arte erudita,
mas pode igualmente ser encontrada no cult e no mid-cult, novamente
salientando-se que nem sempre de forma total, mas apenas parcialmente.
Em nada interfere na
qualidade de uma obra de arte ser erudita ou arte pop, cult ou mid-cult. Dentro das proximidades ou afastamentos da
cultura dita oficial ou do status quo, percebe-se uma grande mescla entre tais
classificações. Porém, não se pode
deixar de dizer que a recorrência da arte-enlevo na arte erudita em muito a
torna “recomendável” ou “preferível” frente a qualquer outra expressão de nível
“inferior” como o cult, o mid-cult e a arte pop.
Relações de contato da arte-enlevo
A arte visionária
pretende lançar mão de visões com experimentos em estados não-ordinários de
consciência (ENOC) traduzidas para as artes visuais. A literatura do
maravilhoso pretende mostrar o mágico e o místico com a rica realidade numa
epifania individual. Qual a relação entre essas diversas tendências – e muitas
outras – e a arte-enlevo? A resposta,
seja ela qual for, deve se situar num lugar de meio termo entre o transe
meditativo e a imaginação espiritual sem ter tais elementos como definidores de
sua poética e sem negá-las ao mesmo tempo. A rigor, a arte-enlevo possui
relação direta ou indireta com a espiritualidade. O espiritualismo ou a
espiritualidade evoca sensações, devoções e práticas muitas e desemboca,
artisticamente, em estados poéticos vários, com n matizes, desde o misticismo
xamânico até o pietismo religioso, de modo amplo. Mas não usa de métodos quaisquer para os
experimentos em ENOC que desembocarão em arte, como na arte visionária. Para a arte-enlevo, o método para ser
suscitador realmente de enlevo, tem que ser natural: meditação, mantra, oração,
recitação, tai-chi-chuan, yoga mas não jejum, nem uso de psicoativos ou drogas,
com exceção das usadas nas seitas Santo D´aime ou União do Vegetal, que possuem
um contexto espiritual em torno do ingerir substâncias próprias, em
determinados ambientes espiritualizados e com acompanhamento adequado. A bem da
verdade, a exceção é apenas uma espécie de “desencargo de consciência”, porque
este autor que fala não experimentou nem pretende experimentar nenhuma
substância “para ter visões” ou para “expansão de consciência” em tempo
algum. Também, por outro lado, não faço
nenhum favor a ninguém de registrar tal exceção, visto que as crenças e os
tipos de crença são diversos e vários em suas formas e, inclusive, em
sincretismos muito afeitos à brasilidade e à nossa realidade contemporânea
mundial.
De modo que, a arte-enlevo pode suscitar realidades no terreno da arte visionária e do maravilhoso, sem ser ou tornar-se, propriamente, arte visionária ou literatura do maravilhoso, sendo mais voltada a uma experiência estética que, generalizante ou generalista, por natureza, não se atêm a uma independência ou subjetividade própria, inerentes. Ao contrário, pode se juntar e/ou se plasmar com outras tendências – desde o anti-design, na comunicação visual até o neoísmo na experimentação artística e cultural; desde o expressionismo abstrato até a literatura fantástica – sem deixar de apresentar ou demonstrar sua preocupação maior em elevar mentes, consciências e espíritos. Sendo esta característica presente como a mola propulsora ou a pedra de toque do processo criativo ou ainda, o alvo a ser alcançado no resultado final da sua prática e teoria. Em qualquer desses três momentos a arte-enlevo propõe o espiritualismo, em essência, mas não descarta o materialismo sendo, nesse sentido, um ponto de contato entre o planejamento (projeto), prática (práxis) e teoria (conceito) no qual a arte possa ser plenamente vivenciada numa apreciação rica e elevada – necessariamente rica em desdobramentos e elevada em apreciação – que possa torna-la próxima do mid-cult, do cult, do erudito e da pop art, sem ser ou tornar-se, totalmente, qualquer uma dessas classificações.
Também não será arte objetiva ou arte sacra, no sentido espiritual do termo e nem arte-terapia ou arte-educação porque não possui compromisso com as agendas terapêuticas, espirituais ou educacionais de modo estrito. No entanto, apresenta um víés de exploração filosófico que, se não é açambarcante, em termos totalizantes, é, ao menos, realizado em primeira instância, a partir desse pensamento: dos “porquês”, dos “comos”, dos “ondes” e dos “quandos” no terreno da apreciação que suscita realidades ou que possa suscitar realidades questionadoras e de impulso ao elevar de apreciações antes ocultas e/ou ausentes do rol de percepções do homem e da mulher contemporâneos.
Por exemplo, porque não buscar compreender, artisticamente:
De modo que, a arte-enlevo pode suscitar realidades no terreno da arte visionária e do maravilhoso, sem ser ou tornar-se, propriamente, arte visionária ou literatura do maravilhoso, sendo mais voltada a uma experiência estética que, generalizante ou generalista, por natureza, não se atêm a uma independência ou subjetividade própria, inerentes. Ao contrário, pode se juntar e/ou se plasmar com outras tendências – desde o anti-design, na comunicação visual até o neoísmo na experimentação artística e cultural; desde o expressionismo abstrato até a literatura fantástica – sem deixar de apresentar ou demonstrar sua preocupação maior em elevar mentes, consciências e espíritos. Sendo esta característica presente como a mola propulsora ou a pedra de toque do processo criativo ou ainda, o alvo a ser alcançado no resultado final da sua prática e teoria. Em qualquer desses três momentos a arte-enlevo propõe o espiritualismo, em essência, mas não descarta o materialismo sendo, nesse sentido, um ponto de contato entre o planejamento (projeto), prática (práxis) e teoria (conceito) no qual a arte possa ser plenamente vivenciada numa apreciação rica e elevada – necessariamente rica em desdobramentos e elevada em apreciação – que possa torna-la próxima do mid-cult, do cult, do erudito e da pop art, sem ser ou tornar-se, totalmente, qualquer uma dessas classificações.
Também não será arte objetiva ou arte sacra, no sentido espiritual do termo e nem arte-terapia ou arte-educação porque não possui compromisso com as agendas terapêuticas, espirituais ou educacionais de modo estrito. No entanto, apresenta um víés de exploração filosófico que, se não é açambarcante, em termos totalizantes, é, ao menos, realizado em primeira instância, a partir desse pensamento: dos “porquês”, dos “comos”, dos “ondes” e dos “quandos” no terreno da apreciação que suscita realidades ou que possa suscitar realidades questionadoras e de impulso ao elevar de apreciações antes ocultas e/ou ausentes do rol de percepções do homem e da mulher contemporâneos.
Por exemplo, porque não buscar compreender, artisticamente:
. O conceito de virgindade como sendo o olhar do
ato amoroso (sexual) como a primeira vez e não como a ausência de prática
amorosa (sexual).
. O conceito de alma-mundo como experienciar do planeta Terra do qual fazemos parte inextricavelmente.
. O conceito de honra, dignidade e valores como sendo inerentes aos seres humanos e não como “adendos” que nos são negados, muitas vezes, no mundo contemporâneo.
. O conceito de beleza, bondade e verdade como poética da vida e não como ideais que nada significam – ou significam muito pouco – para o cidadão médio e mesmo para muitas elites.
. O conceito de alma-mundo como experienciar do planeta Terra do qual fazemos parte inextricavelmente.
. O conceito de honra, dignidade e valores como sendo inerentes aos seres humanos e não como “adendos” que nos são negados, muitas vezes, no mundo contemporâneo.
. O conceito de beleza, bondade e verdade como poética da vida e não como ideais que nada significam – ou significam muito pouco – para o cidadão médio e mesmo para muitas elites.
. O conceito de compaixão e de caridade como
verdadeiras aventuras espirituais e/ou religiosas que levam a um aprofundamento
da fé verdadeiramente e não como meros instrumentos apaziguadores ou atenuantes
para a consciência pesada ou má consciência da classe média ou de muitas
elites.
. O conceito de contemplação e do transcender
definido como o sentir e o estar no mundo e não como um breve momento que é
intercalado pela maior parte do dia, corrido e cheio de urgências.
Os exemplos citados são considerações pessoais minhas e podem, logicamente e subjetivamente, variar conforme a individualidade de cada artista.
Tais conhecimentos ou considerações ciclicamente desaparecem ou
reaparecem das percepções humanas de tempos em tempos e podem ser mais
facilmente ou mais dificilmente acessadas por estéticas artísticas e culturais,
por pensamentos filosóficos e morais ao longo das épocas. A arte-enlevo propõe
a permanência de temas, estilos ou tendências de atitudes “fora de moda” ou
“fora de contexto” no arsenal estético artístico, independente da classificação
ou denominação da vertente utilizada, mesmo se tais atitudes e/ou pensamentos
não forem diretamente ou claramente identificáveis em determinada obra de arte.
Mauricio Antonio
Veloso Duarte
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