sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Paulo Coelho - texto selecionado para a AVL




Academia Virtual de Letras
Patrono: Paulo Coelho
Acadêmico: Mauricio Duarte
Cadeira: 39

“De repente comecei a perceber que havia algo errado. Estava forte demais.  Meu pensamento estava ficando nublado, eu comecei a ver um rosto cigano, e imagens difusas em torno deste rosto.  Eu tinha me transformado em Legião.  Este era o meu poder.  Eles abandonaram aquele pobre cão assustado que daqui a um instante ia cair no abismo.  E agora estavam em mim.  Senti um desejo terrível de despedaçar o animal  indefeso.  “Tu és o Príncipe e eles são Legião”, sussurrou Astrain.  Mas eu não queria ser um Príncipe, e escutei também de longe a voz de meu Mestre dizendo insistentemente que havia uma espada para ser conseguida.  Precisava resistir mais um minuto.  Não devia matar aquele cão.
Olhei de relance o pastor.  Seu olhar confirmou o que estava pensando.  Ele agora estava mais assustado comigo que com o cão.
Comecei a sentir uma tontura, e a paisagem em volta rodou.  Eu não podia desmaiar.  Se desmaiasse agora, Legião teria vencido em mim.  Tinha que achar uma solução.  Não estava mais lutando contra um animal, mas contra a força que me havia possuído. Comecei a sentir as pernas fraquejarem, e me apoiei numa parede, mas ela cedeu  com o meu peso.  Entre pedras e pedaços de madeira, caí com o rosto na terra.
A Terra.  Legião era a terra, os frutos da terra.  Os frutos bons e maus da terra, mas a terra.  Ali era a sua casa, e dali ela governava ou era governada pelo mundo. Ágape explodiu dentro de mim e eu cravei com força minhas unhas na terra.  Dei um uivo, um grito semelhante ao que ouvi a primeira vez quando o cão e eu nos encontramos.  Senti que Legião passava pelo meu corpo e descia para a terra, porque dentro de mim havia Ágape, e Legião não queria ser consumida pelo Amor que Devora.  Esta era a minha vontade, a vontade que me fazia lutar com o resto de minhas forças contra o desmaio, a vontade de Ágape fixa na minha alma, resistindo.  Meu corpo tremeu todo.
Legião descia com força para  a terra.  Comecei a vomitar, mas sentia que era Ágape crescendo e saindo por todos os meus poros.  O corpo continuou a tremer até que, depois de muito tempo, senti que Legião havia voltado ao seu reino.
Notei quando o último vestígio dela passou pelos meus dedos.  Sentei-me no chão, ferido e machucado, e vi uma cena absurda diante dos meus olhos.  Um cão, sangrando e abanando o rabo, e um pastor assustado me olhando.
– Deve ter sido algo que você comeu – disse o pastor, que não queria acreditar em tudo que tinha visto. – Mas agora que você vomitou vai passar.
Concordei com a cabeça. Ele me agradeceu por haver contido o ‘meu’ cão, e seguiu o caminho com suas ovelhas.”

Paulo Coelho

(Extraído do livro O Diário de um Mago . Paulo Coelho . páginas 180 e 181 .  45ª. edição . Editora Rocco . Rio de Janeiro . 1990)


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