Academia Virtual de Letras
Patrono: Paulo Coelho
Acadêmico: Mauricio Duarte
Cadeira: 39
“De repente comecei a perceber
que havia algo errado. Estava forte demais.
Meu pensamento estava ficando nublado, eu comecei a ver um rosto cigano,
e imagens difusas em torno deste rosto.
Eu tinha me transformado em Legião.
Este era o meu poder. Eles
abandonaram aquele pobre cão assustado que daqui a um instante ia cair no
abismo. E agora estavam em mim. Senti um desejo terrível de despedaçar o
animal indefeso. “Tu és o Príncipe e eles são Legião”,
sussurrou Astrain. Mas eu não queria ser
um Príncipe, e escutei também de longe a voz de meu Mestre dizendo
insistentemente que havia uma espada para ser conseguida. Precisava resistir mais um minuto. Não devia matar aquele cão.
Olhei de relance o pastor. Seu olhar confirmou o que estava
pensando. Ele agora estava mais
assustado comigo que com o cão.
Comecei a sentir uma tontura, e
a paisagem em volta rodou. Eu não podia
desmaiar. Se desmaiasse agora, Legião
teria vencido em mim. Tinha que achar
uma solução. Não estava mais lutando
contra um animal, mas contra a força que me havia possuído. Comecei a sentir as
pernas fraquejarem, e me apoiei numa parede, mas ela cedeu com o meu peso. Entre pedras e pedaços de madeira, caí com o
rosto na terra.
A Terra. Legião era a terra, os frutos da terra. Os frutos bons e maus da terra, mas a
terra. Ali era a sua casa, e dali ela
governava ou era governada pelo mundo. Ágape explodiu dentro de mim e eu cravei
com força minhas unhas na terra. Dei um
uivo, um grito semelhante ao que ouvi a primeira vez quando o cão e eu nos
encontramos. Senti que Legião passava
pelo meu corpo e descia para a terra, porque dentro de mim havia Ágape, e
Legião não queria ser consumida pelo Amor que Devora. Esta era a minha vontade, a vontade que me
fazia lutar com o resto de minhas forças contra o desmaio, a vontade de Ágape
fixa na minha alma, resistindo. Meu
corpo tremeu todo.
Legião descia com força
para a terra. Comecei a vomitar, mas sentia que era Ágape
crescendo e saindo por todos os meus poros.
O corpo continuou a tremer até que, depois de muito tempo, senti que
Legião havia voltado ao seu reino.
Notei quando o último vestígio
dela passou pelos meus dedos. Sentei-me
no chão, ferido e machucado, e vi uma cena absurda diante dos meus olhos. Um cão, sangrando e abanando o rabo, e um
pastor assustado me olhando.
– Deve ter sido algo que você
comeu – disse o pastor, que não queria acreditar em tudo que tinha visto. – Mas
agora que você vomitou vai passar.
Concordei com a cabeça. Ele me
agradeceu por haver contido o ‘meu’ cão, e seguiu o caminho com suas ovelhas.”
Paulo Coelho
(Extraído do livro O Diário de
um Mago . Paulo Coelho . páginas 180 e 181 .
45ª. edição . Editora Rocco . Rio de Janeiro . 1990)
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