Nazarín
Ao
analisar “o hálito morno” que perpassa o contexto dos livros de
Milan Kundera, Carlos Fuentes em Geografia do Romance, chama de
“idílio”. O vento “atrevido”, “constante” e “terrível”
teria este nome: 'Idílio” Se é assim para o autor do clássico A
Insustentável Leveza do Ser, qual seria o contexto – resumido em
uma palavra ou em um termo – para os livros de Benito Pérez
Galdós? Ou, para sermos mais humildes em nossa proposta de análise,
qual seria o termo a resumir o contexto de Nazarin, um de seus
romances? Esta pergunta pode não ser válida ou relevante... Mas
continuemos.
Milan
Kundera, autor do nosso tempo, é arcádico? Não, longe disso. Sua
busca é outra. Contudo, a nostalgia é similar ao arcadismo. A
nostalgia pelo simples, pelo amor puro. Nunca experimentado, portanto
não é saudade, é nostalgia. E Galdós? É realista, sem sombra de
dúvida. Embora seu realismo picaresco em Nazarín apele para um
estado puro das coisas, um estado simples, representado pelo padre
Nazarín, que se, talvez não fosse santo no começo do romance,
certamente no fim, o era, porque recebe uma visita divina,
provavelmente o próprio Jesus Redentor, que diz a ele, em sonho:
“Alguma coisa você fez por mim.” De imediato, poderíamos pensar
em Galdós como numa fantasia, num sonho, mas se isto procede, seria
um sonho realista – se é que isto é possível – um sonho
baseado em fatos. Por que digo isto? Porque um santo é um sinal de
contradição – como o foi Jesus de Nazaré – o que o põe numa
“classificação” de paradoxo. A vida de um santo ou de uma santa
não possui esquemas prontos porque a santidade torna a pessoa alguém
fora da roda do samsara, fora do Eneagrama e suas movimentações
entre as nove pontas da estrela. Ele ou ela é redimido, suas
movimentações são outras, não são previsíveis, como as nossas
são, como as da maioria é.
A
temática, nesse sentido, é diversa da temática da avassaladora
maioria dos romances da nossa época (séculos XX e XXI). Galdós é
do século XIX. Nazarín, publicado em 1895, junto com seus outros
livros, põe o autor como um clássico da literatura espanhola. “O
Balzac da literatura espanhola”, já disseram.
Como não
pensar em Dom Quixote? Cervantes, o Machado de Assis da língua
espanhola, constroi seus personagens no mesmo molde inconformista que
Galdós. Ou, melhor dizendo, o padre santo de Galdós só foi
possível por causa de Dom Quixote De La Mancha e todos os seus
contrastes, bem como os livros que Machado escreveria com mordaz
crítica social e humana. Teria existido uma “Questão Coimbrã”,
conforme diz Massaud Moisés em A Literatura Portuguesa, nas letras
espanholas se não tivesse Cervantes chegado antes com seu gênio
moderno? Ou ainda, a Semana de Arte Moderna no Brasil teria sido
adiantada, se daria anos antes do que foi, se não fosse Machado de
Assis, o bruxo do Cosme Velho, a soprar ventos novos?
Nazarín,
de todo modo, é um romance universal e que está além de todas as
querelas rocambolescas de passagem de fase estilística ou até
paradigmáticas. Atravessa os tempos incólume, como O Senhor dos
Anéis ou O Nome da Rosa. Como O Estrangeiro ou Sidarta. É certo que
o realismo quixotesco do padre andarilho o coloca como um personagem
que, já na sua época, não era representante do zeitgeist. Embora
configurado como emblemático da alma espanhola.
Tendo
passagens de um gosto pícaro, dignas de Baudolino de Umberto Eco ou
de Macunaíma de Mário de Andrade, o romance é uma desventura, uma
patuscada, diriam alguns. Por força do seu realismo, uma figura tão
autêntica e religiosa em profundidade, como Nazarín, não poderia
ter outro destino do que a desgraça neste contexto de realidade.
Mas essa
desgraça é real? Dizendo de outra forma, essa miséria é relevante
para o contexto em si da obra? Não. Nazarín foi capaz de receber a
visita de, nada mais, nada menos, do que Nosso Senhor no fim da
contenda. Nazarín nunca se arrogou o direito de ser santo, nem que o
chamassem de santo, preferindo a humildade e a resignação. Nazarín
auxiliou centenas de pessoas doentes ao longo de suas andanças,
junto com duas mulheres que atravessaram sua vida de sacerdote,
inadvertidamente, antes dele se tornar caminhante, como Providência
Divina, talvez... Nazarín conseguiu o feito de converter um ladrão
na cadeia, em circunstâncias de mártir ou de herói – o padre foi
espancado e teve sua defesa pelo ladrão. Por isto tudo, e muito
mais, que o leitor pode conferir, se decidir folhear este livro, do
começo ao fim, digo que o Nazarín teve sucesso. Um sucesso que o
nosso mundo não reconhece. O termo, por conseguinte, a resumir o
contexto do romance só pode ser este: A Graça aos olhos de Deus.
Paz e luz.
Mauricio
Duarte (Divyam Anuragi)
Referências
bibliográficas:
A
Literatura Portuguesa, Massaud Moisés, Cultrix, 33a. Edição, São
Paulo, 2005.
Geografia
do Romance, Carlos Fuentes, Rocco, Tradução: Carlos Nougué, Rio de
Janeiro, 2007.
Nazarin,
Benito Pérez Galdós, Editora José Olympio, Rio de Janeiro, 1990.