As portas da percepção: Thuan
“Se as portas da percepção estivessem limpas, tudo pareceria para o homem
tal como é: infinito.” - William Blake
O homem contemporâneo é doente, de muitas formas e em muitas
dimensões. É o que parece nos dizer o trabalho videográfico de Thuan. Mas há
também uma realidade subjacente aos vídeos de Thuan. Pode ser chamado de
verdade, Deus, Todo, qualquer coisa... Realidade acima, abaixo ou ao lado, em
paralelo à nossa realidade mundana comum, que guarda, em si mesma, um caminho
para o que é subversivo, o que é fora do padrão, não classificável, não
programável, “a verdadeira verdade”, una, pura e nua e tão incompreensível
quanto admirada ou tão rejeitada quanto inconformada. A realidade do rebelde, o
caminho do rebelde. Esse caminho Thuan trilha sem medo e sem fazer concessões.
O desejo de desvendar, de desvelar
os segredos de uma sociedade podre que aliena a multidão com “o pão e o circo”
é inerente ao espírito rebelde de hoje e de todos os tempos. Mas mais do que isto, o espírito rebelde
também sempre anseia ir além da realidade comum, escancarar as portas da
percepção, como diriam o poeta William Blake, o escritor Aldous Huxley ou o
vocalista do The Doors, Jim Morrison.
Há cerca de 500 anos atrás, o Abade
Trithemius elaborava a Estaganografia.
Método de criptografia criado por n razões, dentre elas, a magia, ou a
dispersão da divulgação da prática mágica por obscurantismo. Essa magia permeia
os vídeos de Thuan do começo ao fim. Desvelar e revelar são seus maiores
suportes. Mas nem tudo pode ser
revelado... Ou ao menos nem tudo que não tenha sérias consequências, para quem
revelou. Daí o porquê da minha citação à Estaganografia e à criptografia. Nada
mais, nada menos do que Cornelius Agrippa, Paracelso e Giordano Bruno beberam
na fonte do Abade Trithemius. Numa
analogia, um tanto quanto tosca, Thritemius seria o Hegel do ocultismo. Já que
de Hegel vieram Marx e Bakunin, o comunismo, o socialismo e o anarquismo, por
assim dizer, movimentos sociais e filosóficos que permearam o cenário mundial
muito tempo depois de Hegel. Thuan tem
uma metralhadora giratória, mas que só atira para os lados que ele quer. Não
significa que o criador videográfico esteja passando a mão na cabeça de alguns
dos poderosos de hoje ou das situações hodiernas. Não se trata disso. Antes, Thuan prepara o
terreno para largar a metralhadora e usar suas granadas de mão. “Santa granada de mão”, como diria o grupo
comediante inglês Monty Python... Seja
por rajadas de metralhadora, seja por verdadeiras bombas, o roteiro é sempre
contundente. Senão vejamos:
Em “Excêntrico como Método”, o
criador cineasta nos mostra uma tela em PB, com uma grande avenida de uma
metrópole qualquer, na qual passam carros, ônibus, táxis, e trafegam também
transeuntes quando o sinal fecha. Misteriosamente uma letra B gigante em branco
seguida por uma mão em preto como que “guardando na bolsa” aquela avenida e,
ainda, um Y estilizado no final. A razão desse mistério só compreendemos no
final. Embora antes, podemos ler claramente a palavra “BUY” como ordem absoluta
da sociedade de consumo. O mistério (uma gag visual) só é completo, no final,
conforme dissemos, quando desaparece a mão (que fazia as vezes do U), e o Y, e
fica só o B gigante em branco seguido agora pelo nome do autor, Thuan, formando
assim, o “By Thuan”, por Thuan, assinatura inconfundível do artista.
Em “O Tudo no Dia”, Thuan em
conjunto com Luiz Felipe Santana, mostra um espelho enviesado no que parece ser
um camarim, no qual se aproxima o ator ou a atriz num robe “de pele de onça”,
senta-se em frente ao espelho e começa a ler um texto, como que ensaiando seu
papel. O texto resume que só existe um dia, um único dia, e não centenas de
milhares de dias, conforme comumente pensamos. E ainda, que só no sonho
vivemos, só o sonho pode nos libertar. O “desejo sonhar” nesse caso é “desejo
viver”, em tradução livre do que pretende o autor. Só o sonho salva, o resto é
condenação, a morte, o fim. Após a leitura do texto, o ator bebe a taça de
vinho (provavelmente vinho) posicionada à frente do espelho, juntamente com uma
garrafa, desfocados (em segundo plano ou em primeiro plano? Depende do que
interpretamos porque o ator só é visto no seu reflexo do espelho) levanta-se e
sai definitivamente deixando só o reflexo do espelho focado. No final, numa
tela preta, se vê em letras amarelas, em formato de “manifesto” (ou uma paródia
do “manifesto artístico”?) o seguinte dizer: “Que se substitua o estudo da
História pelo estudo do dia”. “Pois só há um dia.” “Os mistérios da humanidade
residem em cada detalhe do dia”.
Em “Sobre a Observação”, o nosso
artista na direção (junto com Vitor Kruter) e roteiro própirio, nos defronta
com o passar vertiginoso do metrô em primeiro plano chapado, cortando depois
para o trafegar de carros se dirigindo para um túnel ou atravessando abaixo de
um viaduto. A água do mar, os peixes no aquário (ou os homens no aquário da
grande cidade que os peixes veem do aquário?). Um presidente azulado, de faixa
presidencial, com suas malas de viagem, parado numa calçada de cidade grande.
Tudo isto com uma música de fundo instigante, uma espécie de sinfonia, música
instrumental... Um transeunte esperando o trem, quase não o percebemos... Fecha
para a tela preta. Inicia uma conversa muito louca sem música (a conversa do
Chapeleiro Louco de Alice no País das Maravilhas?) com dois homens, sentados
numa mesa, pedindo que venha o garçom. A garçonete vem e serve (água ou
aguardente?) num único copo já posicionado na mesa. Fecha para uma tela preta
novamente. A música instrumental volta. Vemos o entardecer, no céu dos
arranha-céus...Os urubus, as nuvens, um insondável mistério que paira no ar:
para que vivemos, o que espera de nós, a existência? O que esperamos dela?
Carros trafegam, se dirigindo para abaixo do viaduto ou para dentro do túnel. O
trem que chega na estação... Transeuntes a caminhar... Tela preta. Volta a cena
com os dois homens sentados à mesa. Dessa vez reclinados e dormindo, tirando um
cochilo. A garçonete vem, acorda os dois e serve mais uma dose no copo que já
estava posicionado à mesa. A música instrumental dessa vez invade “a cena do
Chapeleiro Louco”. A cena vai para um ângulo superior, com os dois homens na
mesa vistos de cima. Corta para uma fenda num cubo azul em primeiro plano. Uma
criança menina observa a fenda do cubo azul, com um dos olhos, sugerindo que
ela viu tudo que se passou no vídeo inteiro dali...
Thuan é mestre e sabe como ninguém
descascar a cebola da realidade. Seria isto magia? Pode ser... Mas Thuan é
cristão e o cristianismo é subversivo a seu modo. Esta mágica é mais comum e natural do que
muitos de nós imaginam. Como já sabia o
Abade Trithemius. Afinal, a magia do rebelde está bem ali, espreitando na
próxima esquina de uma cidade grande qualquer...
Mauricio
Duarte (Divyam Anuragi)
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