A magia por testemunha
Da
janela do enorme trem de ar, eletro-foto-voltaico, o delegado Sófocles Mor avistava
a mega cidade. O reino de Vera Cruz do
Brasil fora unificado em 2999 por Dom Hermano de Roldão e o lugar era sua jóia
mais rara desde aqueles já distantes tempos. Localizada onde outrora se erguia
o município do Rio de Janeiro, a conurbação – melhor dito assim – surgira do
encontro de municípios vizinhos que se agigantaram tanto, que da continuidade
dessas cidades nascera a megalópole de Santelmo.
O
oficial da polícia de meia-idade sabia que aquilo era uma armadilha. Quando havia sido designado como investigador
para um caso que mal conhecia numa cidade onde só tinha estado duas vezes na
vida, era lógico que algo estava errado, muito errado. Os figurões de Bhar´host,
a capital do reino certamente estavam querendo, mais uma vez, minar as forças
do Arcano 18, movimento do qual o chefe de polícia era signatário. Segundo a carta de intenções do movimento,
seus integrantes se prontificavam em usar a magia apenas para fins altruísticos
e do bem comum em geral, defender a democracia a todo o custo e sob todas as
circunstâncias e instâncias. Mas muitos
nutriam um ranço enorme contra qualquer coisa que se ligasse à arte maior. E
eram esses que esperavam que Sófocles falhasse.
O
assassino em série que já havia feito doze vítimas em Santelmo era o caso. A julgar pelas vítimas, o criminoso só
poderia ser um fanático religioso que se insurgia contra a prática de magia no
mundo. Sófocles lembrava muito bem como
tudo aquilo havia começado: O reconhecimento da força dos cristais -- como
ametista, topázio, rubi, e outras – eram simples pedras preciosas ou nem isso
para o homem do século 21 e como isso havia mudado desde que Dom Von Brauer, o
famoso mago e estudioso codificara e catalogara grande parte das jazidas de
cristais místicos recém encontradas. A partir dali, tinha sido um passo para o
conhecimento, há muito esquecido da feitiçaria cerimonial, surgir no mundo.
Tirou
os olhos da janela e caminhou para fora do seu compartimento, indo em direção
do bar no trem, local de acesso geral dos passageiros. Precisava limpar a garganta e nada melhor do
que um drink para isso.
Estava
bebericando seu copo de whisk quando surpreendeu-se com uma moça jovem, muito
bem vestida e maquiada que o olhava insistentemente.
--
Tem alguma coisa para mim? – perguntou o homem aproximando-se.
--
Sim. – Sorriu maliciosamente a mulher. – Aqui está. – disse estendendo um pacote
para as mãos de Sófocles.
--
O que é? – perguntou ao receber o embrulho.
--
O que é o que? Oh meu Deus... eu... quero dizer... estava falando com o senhor?
Oh... estou tão confusa. – mudando o semblante na mesma hora em que passara a
entrega, a moça agora não exibia nenhum traço da malícia de alguns segundos
atrás.
--
Não foi nada. Não se preocupe. Venha aqui para o bar. Tome um copo
d´água.—disse o investigador que sabia exatamente o que tinha se passado. Sabia
como essas coisas funcionavam. Um leve encantamento, de uma distância segura, havia
sido realizado para que a “mula” efetuasse uma entrega para a pessoa desejada,
no caso o próprio Sófocles. Mas a vítima do passe de mágica não se lembraria de
nada quando fosse feita a entrega. E o operador certamente não estava mais nas
imediações. Indução pós-hipnótica diriam alguns estudiosos céticos; magia pura,
diriam outros, devotos da magia.
Quando
viu que a moça estava melhor, aceitando que não podia se lembrar do que havia
ocorrido nos últimos minutos; Sófocles apressou-se em voltar para o seu
compartimento para ver do que se tratava a entrega. Ao abrir o pacote, ficou ainda mais
intrigado: chips de visualização holográfica.
Pôs os óculos 3D e pôs-se a vislumbrar o conteúdo daquilo. Nada mais, nada menos do que a conversa com o
chefe Kairós Plexo, quando Sófocles ficara sabendo do caso em questão, estava
gravada na holografia. Mas como? Como o
assassino tivera acesso a isso? No final
da apresentação, o que o homem de investigação já esperava, uma ameaça: “Você é
o próximo.”
Depois
de ter completado a viagem de trem, Sófocles Mor subiu em seu mini-planador
foto-voltaico que costurou o ar por cima da imensa avenida que dava para o
portão da delegacia. Devia ter vindo a
pé, pensou o homem após dar-se conta que já tinha chegado em seu destino. “A pé eu poderia sentir as ruas, o sabor
azedo de suas ruas imbricadas por ruelas repletas de crueldade, suor, lágrimas e
sangue.” Concluiu seu pensamento.
Eram
essas ruas, o berço perfeito da criminalidade. O que outrora tinha sido a
grande esperança no futuro, hoje, no ano de 4015, não passava de um arremedo do
sonho de Vera Cruz do Brasil. Os da primeira classe quase não tomavam
conhecimento dessas partes. Estes circulavam
apenas pelos grandes condomínios e casas comerciais de luxo do show bussiness,
das autoridades políticas e dos oficiais administrativos e das forças
armadas. Sempre com créditos suficientes
para uma rápida saída do “bunker” onde estavam para outro “bunker”.
--
Fez boa viagem, Sófocles Mor? – indagou o oficial Clisóstemes Grasso, seu
superior imediato na corporação policial e também membro do Arcano 18, quando
viu o homem adentrar à delegacia.
--
Sim, muito boa viagem. Obrigado por perguntar. – respondeu rapidamente e sem
pestanejar, Sófocles. Notando que sua resposta imediata havia sido sucedida por
uma reação intempestiva do colega ou, senão, tinha a resposta provocado mesmo,
um ligeiro atordoamento e irritação no semblante de Clisóstemes, o homem
fechou-se em meditação.
O dia passou-se num imenso e caudaloso
desfilar de papeladas e protocolos mil que Sófocles conduziu da melhor maneira
que pôde. Ao findar aquela etapa, achou que
o crime era muito peculiar a alguém com um bom nível. O assassino deixava uma única assinatura
identificável entre as inúmeras formas de matar: a morte por asfixia. E todas
as suas vítimas eram magos e sacerdotes ou sacerdotisas mágicos. Porém, por
incrível que possa parecer, os corpos das vítimas não aparentavam sinal de
luta, violência, sufocamento, nada. O emprego de algum artefato mágico poderia
ser aventado de maneira bastante incisiva, no entanto, se o criminoso era
contra o uso de magia... como poderia ser? Magos tem inimigos e, por vezes,
numerosos. Talvez essa investigação estivesse sendo conduzida erradamente.
Ao
final da semana, nenhuma conclusão havia sido tomada pela equipe policial. A
população já começava a levantar rumores e hipóteses. Diziam tratar-se de um
lobisomen, outros diziam que era um vampiro e, outros ainda, que só poderia ser
um chupa cabras alienígena. Num mundo
onde não existia a magia, tais prosódias eram imediatamente passadas por piada
com um inevitável riso. Mas num mundo onde a magia existe, a imaginação grassa
solta e todos são construtores latentes do imaginário de suas egrégoras. Por
mais estapafúrdias que fossem as suas opiniões e por mais sem influência que
uma pessoa fosse, qualquer frase dita sem a devida reflexão “empurrava” a
realidade para uma outra posição. E se
isso era verdade em se tratando de um cidadão comum, mas verdade ainda
tornava-se em se tratando de um chefe de polícia. Por isso, Sófocles Mor que conhecia bem os
meandros de todo aquele novo mundo de feitiços, rituais e muita atitude
mística, não deu nenhuma declaração à imprensa, deixando essa incumbência
apenas para os oficiais de Santelmo que já tinham o traquejo com situações como
essa.
Sozinho
à noite, no seu quarto, Sófocles já tivera três imersões holográficas com a sua
esposa, tentando tranqüilizá-la, dizendo que tudo acabaria bem, que logo o caso
teria um fim e seu marido voltaria para casa são e salvo. Mas não era bem isso o que tinha em mente. Planejava
uma ação perigosa, muito arriscada que no fim, poderia dar certo e revelar o
assassino. Já que esse tal criminoso
queria a sua pele, o homem se daria como isca numa armadilha. Mas essa armadilha seria nos termos do
policial e não nos do malfeitor.
--
Vamos ver, vamos ver. – dizia para si mesmo enquanto consultava os arquivos
virtuais do Grimório de Acalanto na visualização holográfica com os óculos 3D.
-- O antigo ritual do resgate do anel de força.
Sim, isso mesmo. – repetiu.
A
última vítima do assassino tinha sido Katana, uma feiticeira graduada em todos
os níveis e membro do Arcano 18. Aliás,
todas as vítimas mortas tinham alguma ligação com o Arcano 18, ou eram membros
ou eram amigos e/ou parentes de algum signatário do movimento. Mas algo dizia a Sófocles Mor que a situação
era ainda mais complexa.
-- O que você pretende? – perguntou Sersi
Allas, a policial encarregada de auxiliar a Sófocles, quando o homem solicitou
o anel de força de Katana no outro dia, retido para averiguação da delegacia.
--
Uma viagem mística. – respondeu o homem, misteriosamente.
Quando
o anel chegou às suas mãos depois de imensa burocracia, o chefe de polícia
pediu um recinto fechado, cerrou os olhos e deu início ao ritual, recitando
palavras há muito esquecidas que o levavam para a presença de civilizações
perdidas em frente do anel.
De
repente, flashes de acontecimentos da vida de Katana vieram como num rasgo da
realidade saindo do anel com o cristal de ametista. Sua grande ansiedade para
estudar a magia cerimonial. Os títulos e honrarias que recebera. Sua vida familiar com o esposo e os três
filhos. O reconhecimento por ter se
dedicado tanto e, finalmente, o medo.
Medo de um assassino que circulava na cidade e escolhia seus alvos tanto
nos guetos quanto nas ordens superiores e místicas, não fazendo distinção. Um
fanático que... sim... isso era significativo, havia a ameaçado anteriormente
ao falecimento. Ele era... E matou...
desse modo...
Subitamente,
os flashes se fecharam e o anel de poder retomou seus segredos. Sófocles Mor vomitou ao voltar à realidade e,
quase caindo na inconsciência, teve tempo de sacar sua arma de fótons ao
vislumbrar um vulto armado entrando na sala em que estava como havia esperado.
O assassino vinha encobrir a sua identidade.
Disparou um último feixe fotônico antes de cair desacordado.
--
Como você está, herói? – perguntou Sersi Allas ao visitá-lo no hospital de
Santa Granada, o maior e mais completo centro cirúrgico de Santelmo.
--
Estou bem. Mas ainda não pude falar com
minha esposa. – disse o homem com um fiapo de voz.
--
Ela está aqui agora no visualizador holográfico, tome os seus óculos 3D.
Sófocles
explicou detalhadamente e demoradamente à sua conjugue, tudo o que havia
ocorrido e não foi poupado de vários puxões de orelha por ter se arriscado
tanto.
--
Pronto. Ela está mais calma agora. – disse finalmente livrando-se da parafernália
tecnológica. -- E o que vai acontecer agora? – perguntou depois Sófocles.
--
Vão abrir um processo e arquivar o caso. O assassino era Clisóstemes Grasso.
Mas para todos os efeitos, nosso superior morreu ao cumprir o dever. O assassino desconhecido vinha para fazer a
próxima vítima, no caso você.
--
Quando de repente...
-- Quando de repente Clisóstemes se
interpôs entre você e o criminoso, conseguindo evitar a sua morte, mas vindo a
falecer logo depois.
-- E tudo acaba bem em Santelmo.
Quando sair daqui vou beber muito whisk.
Clisóstemes Grasso, o nosso
assassino verdadeiro, mas não reconhecido, utilizava um antiqüíssimo
encantamento muito simples, mas muito letal e, por isso, devidamente esquecido.
Nos flashes da vida de Katana, Sófocles teve acesso ao que ocorrera. O operador
criava um campo de força invisível em volta e em torno da cabeça da vítima, que
sem receber oxigênio durante longo tempo, e sem ver o que acontecia, acabava
duvidando de sua devoção mágica e aí todas as defesas caíam por terra,
falecendo logo a seguir.
O certo era que Santelmo vivia uma nova
era. E nesse tempo, nem mesmo o Arcano
18 estava livre da corrupção e da desvirtuação dos valores democráticos. “Que o
Arcano Maior tenha piedade de nós”, pensou Sófocles Mor, enquanto se levantava
da sua cama no hospital.
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